Ao contrário do que se esperava há uns anos os livros impressos não estão em vias de desaparecer, por isso o melhor é saber paginá-los.
Antes de ser designer eu já era leitora. Ainda não sabia os segredos da boa tipografia, mas já conhecia o poder misterioso de uma boa história. Os livros foram o meu objeto preferido muito antes de sonhar que um dia haveria de os desenhar. Na verdade, eu já adorava livros antes de os saber ler (aquele cheiro a tinta e papel!), mas foi com a descoberta da leitura – a alquimia da junção das letras a revelar palavras, a desvendar frases e a contar histórias – que O LIVRO se transformou para mim em santo dos santos. Até hoje.
“Os livros foram o meu objeto preferido muito antes de sonhar que um dia haveria de os desenhar.”
Nessa altura, não tinha percebido que parte da facilidade com que virava página após página dos meus primeiros livros “para crescidos”, aqueles só com texto corrido e nada de imagens, se devia à qualidade da paginação – uma grelha arejada com entrelinha bem escolhida, margens bem planeadas e, sobretudo, boa tipografia.
Ainda não sabia que, por muito que um arco narrativo esteja bem resolvido e as personagens sejam apaixonantes, se a paginação não estiver à altura, o leitor pode sentir-se tentado a pousar o livro logo no primeiro capítulo. Tenho hoje a certeza que nunca consegui terminar um “Doutor Zhivago” que havia na estante dos meus pais porque o corpo de letra era minúsculo e a própria fonte criava uma mancha de texto densa e desagradável. Podemos também especular aqui que aquela infinidade de patronímicos russos foi demais para mim, no entanto, não me incomodaram nada quando li “O Idiota”, edição mais moderna e mais bem paginada, que vivia na prateleira de baixo. Era Pasternak pior contador de histórias que Dostoievski? Provavelmente, mas não vem agora ao caso. O que aconteceu foi que o pobre Doutor Zhivago foi vítima de péssimas opções de paginação. E isto é dizer tudo.
“… por muito que um arco narrativo esteja bem resolvido e as personagens sejam apaixonantes, se a paginação não estiver à altura, o leitor pode sentir-se tentado a pousar o livro logo no primeiro capítulo.”
Hoje em dia, com a enorme variedade de fontes disponíveis, gratuitas e pagas, pode ser um desafio começar a desenhar um livro. Seguimos o caminho tradicional ou vamos ser mais arrojados? Vale a pena lembrar que a criatividade e a originalidade são importantes, mas quando se trata de paginar, a leitura fácil deve estar sempre no topo das nossas preocupações. Assim, o meu conselho para enfrentar a intimidante página em branco é só um: não vale a pena reinventar a roda. Se já foi feito antes e com bons resultados, é aprender com isso e aproveitar a voz da experiência. Para paginação clássica, fontes clássicas. E isso para mim significa, serifas. Nunca falha.
“…a criatividade e a originalidade são importantes, mas quando se trata de paginar, a leitura fácil deve estar sempre no topo das nossas preocupações.”
Estas são “as minhas” 5 fontes, aquelas em que confio e que mais gosto de utilizar para garantir uma paginação simples e elegante e uma óptima leitura da primeira à última página. Além disso, são lindas. Podemos pedir mais?
1. Baskerville
Apaixonei-me por esta fonte serifada ainda na faculdade. Na altura utilizava-a para todos os meus trabalhos de história de arte, porque é uma fonte que continua a ter muita leitura quando fazemos uso de corpos pequenos (sim, eu escrevia sempre mais do que a conta…). Para além disso, para uma fonte que já anda por cá desde 1750, tem um aspecto muito moderno e leve. A Baskerville é ideal para conseguimos páginas bonitas, fáceis de ler com o misto de tradicional/ moderno a torná-la perfeita para obras de ficção. Também gosto muito de a usar para títulos, em cartazes e capas de livros, mas é na paginação que as suas excelentes qualidades se destacam. Está disponível em diversas tipologias mas nunca precisei de mais que o regular, bold e itálico. Keep it simple…
Obrigada, John Baskerville!
2. Garamond
O clássico dos clássicos, ou, já que estamos a falar de uma fonte francesa, “La créme de la créme”! Jorge dos Reis, que foi meu professor na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e me ensinou a adorar tipografia, costumava dizer que se consegue adivinhar pelo desenho das fontes a nacionalidade dos seus criadores. Garamond é um bom exemplo disso. Olhamos para aquele G e surge-nos logo a figura de Claude Garamond, muito francês, com aquela sofisticação sem esforço e carradas de charme. E se formos a olhar para os itálicos… “Oh, la, la”!
Esta foi a primeira fonte que me habituei a reconhecer enquanto mancha de texto. A maior parte dos livros das nossas estantes deve estar paginada em Garamond. Ora espreitem. E é sempre um agradável reencontro abrir um livro paginado nesta fonte, mesmo que não tenhamos logo essa noção. Tão popular como versátil, neutra e de uma beleza simples, nunca nos deixa ficar mal. Ideal para aqueles calhamaços de 400 páginas, está disponível em 6 espessuras na versão Adobe Garamond Pro, por isso não há desculpas para não usarmos e abusarmos dela. É o que eu faço.
3. Sabon
Os anos 60 deram-nos mais que revoluções sociais, padrões psicadélicos e canções eternas. No campo da tipografia, a fonte Sabon está para Jan Tschichold como “Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band” está para os Beatles. A “Rolling Stone” considerou este o Melhor Álbum de Rock de Sempre e eu não exagero se considerar a Sabon uma das 5 Melhores Fontes de Sempre – para paginação.
Depois de alinhar com a corrente da nova tipografia trazida pela Bauhaus, tornando-se um dos maiores e melhores representantes desse estilo, este tipógrafo alemão regressou às origens na maturidade da sua carreira e criou aquela que é considerada a mais elegante das reinvenções do estilo romano do tipo Garamond. É considerada romântica, feminina até, e isso talvez seja um reflexo da clareza das suas linhas modernas e da doce leitura que proporciona. Não que o sexo feminino seja sempre claro… ou doce. Mas estão a ver a ideia.
Se o texto que têm em mãos é denso, a Sabon é sempre uma excelente aposta.
4. Caslon
Se a Garamond é a fonte francesa por excelência, a Caslon é a representante maior das fontes clássicas britânicas. Considerada a primeira fonte original inglesa, nasceu em 1722 pela mão de William Caslon e era tão popular na época que atravessou o Atlântico e foi com ela que se paginou a primeira declaração impressa de Independência dos Estados Unidos. Impressionante, não é? Conheceu alguns períodos menos populares, mas nunca deixou verdadeiramente de ser usada. Grande favorita do movimento Arts & Crafts no século XIX, é ainda hoje preferida por muitos designers a quem agrada a solenidade que imprime ao texto, transformando de imediato qualquer paginação numa coisa “séria”. Apesar de não ser uma fonte “para brincadeiras”, podemos usá-la sem medos porque nunca nos falha, já que a sua classe do século XVIII soube adaptar-se lindamente ao século XXI. A nova versão da Adobe (Adobe Caslon Pro) funciona muito bem em meios digitais e continua linda como sempre. Acabei de a utilizar na paginação de um livro de poesia, capa e miolo, que ficou particularmente bem.
5. Goudy Old Style
Desta lista já constam fontes francesas, inglesas e alemãs… chega agora a americana! Há uma imensidade de fontes Goudy, mas aqui estamos a falar da Goudy Old Style – perfeita para paginação extensa… e chata. Esta é uma fonte moderna, criada por Frederic Goudy para a American Type Founders em 1915, cuja principal característica é ser leve, leve… LEVE! De inspiração renascentista italiana, uma tendência muito em voga no início no século XX, nos Estados Unidos, foi criada a partir do estudo exaustivo dos itálicos do século XVI, que Goudy apreciava. Talvez por isso, mesmo quando está na versão regular, pareça sempre que vai levantar voo… Os itálicos, claro, são lindíssimos, mas a mim agrada-me sobretudo o tom claro com que fica uma página de texto completa. Mesmo com uma entrelinha apertada e espaçamento pouco generoso entre letras, conseguimos obter uma mancha muito agradável e com aquele toque… Old Style! Obrigatório usar pelo menos uma vez. Não admira que a famosa revista Harper’s Bazaar tenha sido originalmente paginada com esta fonte.
Só mais uma: Rongel
E agora, se me permitem, vou adicionar mais uma fonte a esta lista e trata-se de uma escolha fora da caixa. Primeiro, uma confissão: esta fonte nunca usei pessoalmente, mas admiro-a muito… à distância. Trata-se da Rongel, uma fonte do designer português Mário Feliciano. Conheci-a através das edições portuguesas dos livros da Zadie Smith, “Uma questão de Beleza” e “Swing Time” criados pelo atelier Henrique Cayate e… o que é que querem? Apaixonei-me à primeira leitura!!
É uma fonte de inspiração espanhola por isso tem salero. Sólida, elegante e muito divertida, com detalhes caprichosos para descobrir. Cria páginas ousadas, cheias de atitude, muito expressivas. Apesar disso nunca perde de vista o tom clássico das fontes serifadas. Gosto muito de ler páginas em Rongel… ou então gosto muito de Zadie Smith. Provavelmente as duas coisas!
Estou à espera do projecto perfeito para a experimentar. Se também estiverem tentados, fiquem a conhecê-la melhor aqui.
Agora que ficaram a conhecer as minhas preferências, porque não partilhar também as vossas? Que fontes gostam mais de usar para paginação clássica? Alguma destas? Que livro leram recentemente com uma paginação muito boa? Ou, pelo contrário, desistiram da leitura a meio por que era terrível? Como fazem para escolher a fonte certa para cada projecto?
Vamos trocar ideias! 😉
![]() |
Marina Soares | Creative Director marinasoares@finepaper.pt |
Copy editor: Katheryn Kruise
Design & DTP: Spice. Creative Seasoning